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Com Assis, pelos caminhos – Por Raquel Moysés

Pequenino, ele curava as próprias feridas com a água salgada e consoladora das lágrimas. A vida era dura e os grandes não tinham quase tempo para se debruçar e cuidar das machucaduras e picadas que afligiam as crianças. A necessidade da sobrevivência era premente em uma família de oito irmãos.

Moleque de calças curtas e pés caminhantes, José de Assis Filho habitava as cercanias do que viria a ser um dia o campus universitário da Trindade. Com a carriola de madeira, batia perna ladeira acima e estrada abaixo, recolhendo roupas sujas daqueles que podiam pagar os serviços de uma lavadeira. As mesmas estradas percorria depois, desde o Pantanal, para devolver a seus donos as trouxas cheias de peças alvas, frescas e perfumadas pelas mãos enérgicas de sua mãe, que as havia lavado em água fresca de córrego, quarado sobre a relva e secado ao calor do sol e ao embalo de ventos que se alternam nas estações tão mutáveis nesta ilha de Santa Catarina.

Somados os anos, homem feito, coração de menino crescido, agora ele cuida de almas feridas, alimentado pelo dom da generosidade bondosa e da amorosidade plena de compaixão. José de Assis Filho tem uma história que se faz em intrincado tecer, entrelaçado com o nascimento da Universidade Federal de Santa Catarina. Sua vida se mescla ao mundo da universidade. Mas não uma universidade de tijolos, argamassa, paredes, portas, janelas, prédios, equipamentos, utensílios. A sua vida se mescla a uma universidade sonhada, feita de pessoas pensantes, construída por uma comunidade de gente. Uma universidade sonhada, aquela UFSC que ainda não é, mas que Assis e outros que carregam seu sonho querem que seja, acolhendo definitivamente a vida, a criação, a invenção, a aventura infindável do conhecimento para o bem.

O ser único de Assis tem sabido, como poucos, ser duplo, ser vário, ser coletivo. O seu ser único e indivisível se expande no desejo de ser com o outro, de ver o outro, de amar o outro, assim como o santo de sua devoção. Aquele Francisco de Assis, a quem o nosso Assis traz a responsabilidade de levar no nome de sua identidade. Como o Francesco que nasceu na Assisi italiana – cidadezinha de verdes colinas e casario que se colore de róseos e vermelhos tons quando os raios de sol a golpeiam de suavidades – o José brasileiro soube se desnudar e romper com os que queriam acorrentá-lo às amarras de um poder que corrompe e que se perpetua no mundo universitário sitiado na Trindade. E esse Assis brasileiro tem sabido, ao longo dessa sua história de cinco décadas, fazer escolhas, algumas conscientes, outras intuitivas, mas sempre guiadas pelo espírito de lealdade e generosidade.
Nas horas mais alegres das duras batalhas do povo, das passeatas, das marchas, das manifestações, ao nosso lado, sempre encontramos Assis. Olhos alagados pelo assombro de fazer parte de momentos únicos da luta pela vida e pela justiça. Olhos gotejantes pela alegria de estar caminhando com a juventude quando ela se levanta e brada contra o inaceitável.

Homem que se faz nas duras batalhas do cotidiano de uma universidade que fragmenta, compartimenta, retalha o conhecimento universal, Assis vem construindo um saber generoso que compartilha e difunde. Quem o conhece, o ouviu falar repetidas vezes, “Sou puro…”, antes de iniciar seu dizer sobre algo que o envolve, indigna ou comove… Ser puro, para Assis, significa “ser verdadeiro”, mesmo quando erra, falha, avalia com imprecisão.

E isso Assis não tem medo de fazer: oferecer a sua face pública para bater. E é esse saber que vem criando, acertando e errando, caindo e se levantando, gritando mas sempre oferecendo ternura, que ele dedica à universidade brasileira, seus trabalhadores, sua juventude. Trabalhador técnico-administrativo da universidade pública brasileira, ele não exibe títulos a granel, mas tem sido aplaudido em debates por doutores e futuros PhDs por suas tiradas surpreendentes e suas provocações ousadas. Às vezes exagera na dose, alguns dizem. Mas mesmo quando se excede, levanta a voz e vocifera contra alguma posição, na sua idéia, inaceitável, Assis é sempre movido pelo amor que tem pela humanidade. A sua indignação, a sua rebelião, a sua revolta são, no fundo, sempre um grito de amor. E por esses gestos de amor muita vez ele foi punido. Por causa desses gestos, responde a processos administrativos e ações na justiça que tentam tornar crime a justa rebelião dos que lutam pelo bem da universidade, dos estudantes, da comunidade, do povo.

Quando te conheci Assis, um dia que se perdeu nas brumas da memória, jamais poderia intuir quantos trilhares seguiríamos juntos, com mais um tanto de nossos companheiros e companheiras. Sem nem perceber como, você foi entrando na minha vida nesta universidade que amo, e desprezo ao mesmo tempo, por seus males exercidos em nome da hipocrisia e da ganância usurpadora. Só hoje, quando me comovo vendo-te enfrentar a tua dura batalha pela vida, é que percebo com toda transparência o quanto já me ensinaste com teu riso claro, tua mão levantada, teu braço forte e caloroso a sustentar nas horas mais difíceis do sofrimento, da decepção, da solidão, das doenças, das perdas irreparáveis, das despedidas derradeiras.

Aprendi, com tua humilde e sincera alegria, o desprendimento de celebrar a vida do outro, de festejar a chegada de um projeto novo ou o parto de uma idéia nascente. Tuas mãos laboriosas, ao lado das de tua companheira Tânia, têm preparado para os nossos momentos de celebração alimentos que trazem o sabor da amizade, do companheirismo, da beleza sofrida de compartilhar uma mesa plena tendo a consciência de que muitos padecem de fome, frio e solidão.

Essas mesmas mãos alisaram, orientaram, endereçaram, no Departamento de Administração Escolar, o DAE, em milhares de processos, a vida universitária de meninos e meninas de todas as procedências, os estudantes que você ama com desvelo de pai e cuidado de irmão. Pelas suas mãos, na casa branca de janelas azuis da esquina da igrejinha, já circularam montanhas de processos acadêmicos. Mas você nunca trabalhou com eles manuseando documentos que falam de meros aproveitamentos, notas e condições para colar grau. Você lida com esses papéis como espelhos da vida de seres humanos únicos e indivisíveis, com suas necessidades, dores, crueldades e doçuras.

Ao longo desses anos inteiros, centenas de jovens te pediram ajuda e tiveram de ti uma palavra de conforto, um gesto de compreensão, uma indicação de rumo, uma palavra de orientação. Foram muitas as horas solitárias, noite adentro, para dar conta de cumprir o trabalho com prazo e hora. A dedicação ao trabalho no Sindicato dos Trabalhadores da UFSC, o Sintufsc, anos a fio, roubou mais horas de tua presença perto de teus queridos mais íntimos. Quanto mais se alargava tua família humana, mais a tua família de sangue teve que suportar tuas ausências e entender tuas escolhas. Somaram-se horas, dias, meses, anos de dedicação em assembléias, plenárias, caravanas, greves, marchas, debates. Estradas afora tua voz se levantou em defesa da educação, da universidade pública, dos hospitais universitários, dos serviços públicos, da vida decente para todo o gênero humano.

As estradinhas e caminhos do campus conhecem teus passos incansáveis e agora se ressentem de tua ausência. Gente de todo o país sente a tua falta na hora do debate nas plenárias de trabalhadores públicos. Falta o teu corpo dançarino movendo-se no calor do entusiasmo, microfone na mão. Falta a tua voz elevada na hora de mostrar a gravidade dos fatos e de fazer a denúncia do desmando e da injustiça. Falta a tua mão levantada, a tua advertência amorosa. Falta o teu riso de menino para nos despertar a esperança esmaecida.
Mas teus amigos e amigas compreendem que agora você precisa ficar no aconchego do teu ninho familiar para te curar, amparado com tanto desvelo pelos que te amam. Teus companheiros de luta entendem que agora é hora de cuidar do corpo e do espírito do lutador sem parada. Teus irmãos e irmãs dessa grande comunidade humana sabem que você não se ausenta agora por desistir da luta, ou por ter cansado de resistir.

Assis, o homem de luta está em luta. E essa luta pela vida individual não é uma renúncia a nada do que ama e pelo que se bate há uma vida inteira. Teu silêncio, nós sabemos, ainda é um chamado, é um grito, é um clamor. Do teu cantinho, no alto da Servidão Corintians, enfrentando este momento de provação, você resiste e nos ensina que é preciso seguir, que é preciso enfrentar, que é preciso amar com amor infindo. Você nos ensina que a vida é sempre. E que nós só existimos no movimento da vida que se levanta e se revela na resistência e na luta humana ao longo dos tempos.

A sabedoria mais profunda que o homem pode alcançar é saber que seu destino é ajudar, é servir… A aspiração é obter; a perfeição é distribuir.”
(Abraham Joshua Heschel)

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