No fundo dos olhos orvalhados pelas águas purificadoras do pranto, vi um sentimento de orfandade. Desamparada, a estudante enlaçou-se em meus braços, e disse: – E agora, como vamos fazer sem ele?
A perda era de apenas poucas horas, mas já havia entre os que o amavam um sentimento de grandioso vazio. Como iria ser a vida na universidade sem Assis?
Ainda hoje, há momentos em que me esqueço de sua ausência, e me pego pelos caminhos do campus esperando encontrar Assis em qualquer estradinha, com sua camiseta amarela preferida ou uma das tantas que vestia, sempre com a luta estampada no peito. Parece-me até avistar o seu vulto irrequieto e a inseparável pasta azul, repleta de projetos de lei, relatórios, recortes de jornal. A pasta que ele jogava sobre a mesa, na sala de reuniões do sindicato, ou nos nossos locais de trabalho, enquanto já nos cobria por uma avalancha de perguntas, informações e análises políticas.
Assis era assim. Conseguia transitar do microcosmo do universo humano mais íntimo – sempre preocupado com cada ser e suas aflições cotidianas – até o macrocosmo das questões vitais – os imensos problemas que afligem a vida da universidade, da cidade, do país, do mundo, da humanidade.
A um ano de sua morte inesperada, é hora de lembrar nosso companheiro e celebrar ainda a sua vida. Não para marcar com melancolia o tempo que se passou desde que o perdemos, ou para fazer aquelas homenagens que apenas assinalam oficialmente uma existência que já não é.
Dia desses, alguém comentava, em uma de nossas reuniões, que talvez fosse chegado o momento de deixar “Assis descansar”. De parar com as homenagens nos momentos em que os trabalhadores estão reunidos para lutar ou festejar.
Naquele dia, fiquei um tanto remexida, pensando no que dissera o companheiro. Mas, depois de muito refletir, repito o que já escrevi em algum momento, quando perdemos outros companheiros. E assim fazendo, trago “à vida”, com minha recordação, outro homem que faz falta nesse Brasil de fugaz memória: Herbert José de Souza, o Betinho.
Betinho, o irmão do Henfil, dizia que “a morte mais definitiva é o esquecimento.” Concordo com esse homem que sonhava um Brasil justo e amoroso, que realmente debelasse a fome, pois também penso que não podemos deixar morrer “de morte definitiva” os que amamos. Enquanto os que conheceram e amaram uma pessoa manifestarem viva a sua memória, a recordação dela ficará no mundo da vida como uma presença indelével, um rastro, uma luz, uma esperança.
Este momento de rememorar nosso companheiro Assis, a um ano de sua partida, deve, penso eu, representar uma celebração da vida. Mas deve também assinalar uma travessia, um instante de reflexão sobre os caminhos percorridos pelo nosso sindicato, pela universidade, pelos trabalhadores e estudantes, pelos lutadores de todo canto.
Retorna, assim, para nós, a distância de meses, a pergunta que fez a amiga estudante no dia em que acompanhamos o corpo de nosso amigo ao seu leito de terra: O que estamos fazendo sem Assis?
Essa pergunta me assombra desde então, e o que tenho notado é que o movimento dos trabalhadores e estudantes continua meio perdido, vivendo uma situação de desconcertante imobilidade. A pretexto de tudo, há sempre uma desculpa para ausências, omissões, desencontros. Continuamos de certa forma agindo como se estivéssemos “seqüestrados” em nossa própria casa por alguns companheiros de outros tempos, que agora fazem o jogo do governo. Ou construindo o “capitalismo dos trabalhadores”, administrando, por exemplo, fundos de pensão. Ou atados a uma visão instrumental de poder, agarrados a altos cargos e privilégios que amealharam por terem passado para o outro lado.
Porém, não quero aqui deixar impresso um olhar derrotista, uma aflição que não encontra amparo. Quero erguer, com meu braço frágil, a bandeira da esperança, a despeito de minhas dores todas. Ainda sei que nossas inumeráveis batalhas só podem ser cumpridas por decisões e atitudes coletivas. Nem que, para começar, sejamos apenas uns poucos, a correnteza desse rio só pode engrossar no dia em que entendermos que não há caminho possível isolados no nosso campus de trabalho.
Nossos passos necessitam pisar o espaço das ruas, das praças, com os trabalhadores do campo e da cidade. Em 2008, reavivamos o Movimento Unificado contra a Privatização, o Mucap, numa luta decisiva pelo serviço público, ameaçado por uma cruel e disfarçada privatização através de fundações, organizações sociais, parcerias público-privadas. Com o Mucap, abre-se de novo uma clareira de esperança. Precisamos manter viva esta luz e inspirar outros de nossos companheiros a seguir a estrada juntos.
Não tenho dúvida de que os olhos de Assis faiscariam ao seguir este caminho com a gente. Com certeza, sua voz estrondaria pelas praças e ruas, anunciando a boa nova da esperança. Uma esperança que ficou assinalada em uma parede, na entrada da Servidão Corintians, nos dias em que nosso companheiro, em sua casa, no alto daquela ruazinha sem saída, ainda enfrentava sua derradeira batalha pela vida. Até hoje, quem passa por ali, encontra, grafitado na parede: Estudante e trabalhador fazem a história juntos…!
E é por lembrar Assis, e todos os que lutaram ao longo da história, que tanto me comoveu o que escreveu, dias atrás, meu filho, inspirado em imagens de lutadores do novo livro do Sintufsc. É pelos dois, Assis e meu menino – e pela humanidade que amo – que me deixo levar pelo desejo de Stefano, na brandura de seus verdes anos:
“Quero, com meus irmãos infindos, vagar pelo reverdecente prado da esperança. Travarei emudecidas batalhas. Na frieza humana, farei nascer a calidez da ternura…”