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Entrevista com Maria Lúcia Fattorelli: Ajuste fiscal do governo ataca serviço público e classe trabalhadora

23/12/2024

Entrevista com Maria Lúcia Fattorelli: Ajuste fiscal do governo ataca serviço público e classe trabalhadora

Em entrevista para o SINTUFSC, Maria Lúcia Fattorelli, da Auditoria Cidadã da Dívida, explica os fundamentos do projetos de ajuste fiscal do governo. Com uma análise detalhada sobre os fundamentos do ajuste fiscal proposto pelo governo, ela mostra como essas medidas podem precarizar os serviços públicos, aumentar as desigualdades sociais e aprofundar o impacto negativo na vida dos trabalhadores.

1 – Quais são os principais pontos do pacote fiscal (PL 4614/2024, PLP 210/2024 e
PEC 45/2024) enviado pelo governo Lula para a aprovação do Congresso Nacional?
Qual sua avaliação sobre esse pacote?

O pacote anunciado pelo ministro Haddad no dia 27/11, em cadeia de TV, e confirmado
por meio de projetos de lei (PL 4614/2024 e PL 210/2024) e proposta de emenda à
Constituição (PEC 45/2024) mostra a prioridade que é dada para os gastos financeiros
com juros e amortizações de uma chamada dívida pública que não tem contrapartida
alguma em investimentos de interesse da sociedade. Vem no sentido contrário ao que
precisamos, pois o rombo das contas públicas está justamente no gasto com o Sistema da
Dívida, e não nas áreas sociais.

Além de atingir negativamente a imensa maioria da população brasileira, que se encontra
na pobreza ou empregada com salários baixos, esse pacote de corte de gastos sociais
constitui, na minha opinião, um marco extremamente negativo na trajetória do presidente
Lula, na medida em que contém um ataque direto ao salário-mínimo, ao Benefício de
Prestação Continuada (BPC) e ao abono salarial, direitos importantes para a parcela mais
empobrecida da população brasileira, até então defendida por Lula desde o início de sua
atuação política. A partir desse pacote, Lula é outra pessoa; sua história é outra.
O pacote segue a lógica do Arcabouço Fiscal (Lei Complementar 200/2023), cuja
exposição de motivos enviada pelo governo federal ao Congresso confessou
expressamente que seu objetivo é “guardar recursos importantes para o pagamento
da dívida pública”.

A redução de gastos sociais resultante das medidas desse pacote, que recai principalmente
sobre as pessoas mais vulneráveis, deve ser de R$ 30,6 bilhões já em 2025, segundo
anunciado pelo governo, e seguirá aumentando nos anos seguintes, conforme tabela
divulgada pelo próprio governo (ver abaixo), somando R$ 327,1 bilhões até 2030, dos
quais R$ 109,8 bilhões sairão do salário mínimo.

Durante a votação no Congresso Nacional algumas alterações foram aprovadas, aliviando
um pouco o dano ao Fundeb e ao direito de acesso BPC, mas ainda assim o prejuízo será
grande para a população mais pobre.

Dentre as medidas nocivas destaco a que considero mais grave, referente à limitação no
reajuste do salário-mínimo. A partir desse pacote, o reajuste anual será de, no máximo,
2,5% acima da inflação, desde que cumpridas as exigências previstas no Arcabouço Fiscal
no que se refere a atingimento de meta de superávit, crescimento da arrecadação etc.

O pacote aumenta as dificuldades para acesso ao Benefício de Prestação Continuada
(BPC), o que reduzirá o número de pessoas atendidas, e elimina paulatinamente as
pessoas que recebem entre 1,5 e 2 salários-mínimos do direito ao abono salarial.
Quando se depara com a subtração de dinheiro dessas pessoas mais pobres, que precisam
de um BPC, ou recebem apenas até 2 salários-mínimos, para destinar ao pagamento de
mais juros para bancos e grandes corporações que especulam com os títulos da chamada
dívida pública se confirma o que a Auditoria Cidadã da Dívida tem denunciado: é urgente
enfrentar o Sistema da Dívida.

O pacote de cortes de gastos contém ataques a direitos do funcionalismo público, com
restrições para concursos e possibilidade de limitar reajustes acima da inflação a ínfimos
0,6%. A retirada de recursos da Educação (Fundeb), gerou reação no Congresso Nacional
e foi um pouco amenizada, mas ainda se manteve uma subtração de recursos de uma área
que deveria estar recebendo aportes extras de recursos e não retirada.
Outras medidas como o congelamento, em termos reais, do Fundo Constitucional do DF
(que é aplicado principalmente em investimentos em saúde, educação e segurança
pública) e a prorrogação da Desvinculação das Receitas da União (DRU) até 2032,
dispositivo que na prática retira recursos de diversas áreas para direcioná-los ao
pagamento da dívida pública, mostram que o dano social embutido no pacote de Haddad
e Lula não poupou as áreas sociais.

Em resumo, não há nada de positivo neste pacote de medidas, que restringe e reduz
investimentos nas áreas sociais para que sobre mais dinheiro ao sigiloso Sistema da
Dívida, que comprovadamente não tem contrapartida alguma em investimentos de
interesse do país e tem estado historicamente repleto de ilegalidades, ilegitimidades e até
fraudes, motivo pelo qual lutamos pela auditoria integral dessa dívida, com participação
social.

2 – Quais impactos os trabalhadores do serviço público podem ter se o pacote for
aprovado? E para os aposentados?

O Projeto de Lei Complementar (PLP) 210/2024 ataca duramente os servidores públicos
federais (ativos, aposentados e pensionistas), ao inserir o artigo 6º-A na Lei
Complementar 200/2023 (Arcabouço Fiscal) estabelecendo teto pífio de 0,6% para o
crescimento real anual do montante da despesa de pessoal e encargos de cada um dos
Poderes, caso, de 2025 a 2030, não ocorra o “superavit primário” no ano anterior, ou seja,
caso a soma das chamadas receitas primárias supere a soma dos gastos com toda a
estrutura do Estado e os serviços sociais prestados à população. O problema é que a
fórmula usada para se calcular o resultado primário omite uma série de receitas, inclusive
não relacionadas à emissão de títulos da dívida pública, por isso esse cálculo é
questionável e tem se prestado a impor mais restrições aos investimentos sociais.

O referido projeto também estabelece expressamente que este resultado primário será
calculado pelo Banco Central, que recentemente se tornou autônomo (Lei Complementar
179) e, não satisfeito com toda regalia para agir como já vem agindo, deliberadamente
em benefício do setor financeiro privado nacional e internacional, em detrimento dos
interesses da coletividade, em flagrante desrespeito à Constituição Federal (art. 192), que
mais liberdade ainda: por meio da PEC 65 quer se transformar em empresa regida pelo
direito privado, o que é uma aberração!

A inserção do artigo 6º-B na lei do arcabouço fiscal prevê que, mesmo se ocorrer superavit
primário, o pífio teto de 0,6% para a despesa de pessoal será também aplicado caso, de
2027 a 2030, as despesas discricionárias totais (ou seja, aquelas que o governo pode
manejar livremente) “tenham redução nominal, na comparação do realizado no exercício
anterior com o imediatamente antecedente”. Caso esta regra estivesse em vigor em 2023,

já teria sido aplicado este ínfimo teto de 0,6% naquele ano, dado que a chamada “Despesa
Discricionária” caiu de 2021 para 2022. No que se refere aos aposentados do Regime Geral da Previdência Social, eles serão
prejudicados pela limitação do reajuste do salário-mínimo, que também prejudicará
severamente a imensa maioria da classe trabalhadora e também as pessoas que recebem
o BPC.

3 – O governo propagandeou o pacote com duas medidas a ampliação da faixa de
isenção do imposto de renda para quem ganha R$ 5.000,00 e a limitação dos
supersalários. Essas medidas serão implementadas? Qual sua avaliação sobre elas?

A elevação do limite de isenção do Imposto de Renda para R$ 5 mil seria positiva e já
deveria ter sido feita há muito tempo, haja vista a defasagem de mais de 150% na
atualização da tabela do imposto de renda. Porém, essa promessa de elevar a faixa de
isenção não constou de nenhum dos projetos de lei ou proposta de emenda à Constituição
apresentados pelo governo ao Congresso Nacional. Em 18/12/2024, o ministro Fernando
Haddad finalmente reconheceu publicamente que essa proposta somente será
encaminhada ao Legislativo em 2025.

Segundo o discurso do ministro Haddad no dia 27-11-2024, ele estaria anunciando “a maior reforma da renda de nossa história. Honrando os compromissos assumidos pelo presidente Lula, com a aprovação da reforma da renda, uma parte importante da classe média, que ganha até R$ 5 mil por mês, não pagará mais Imposto de Renda”.

O próprio ministro menciona “com a aprovação da reforma da renda”, ou seja, a isenção
para quem ganha até 5 mil reais depende de aprovação, pelo Congresso Nacional, da
reforma do imposto de renda, e mais, o ministro condicionou essa isenção ao aumento de
tributação das pessoas que recebem acima de R$ 50 mil mensais (que somente poderia
valer para 2026), para que haja compensação da perda de receita com a possível isenção
de quem ganha até R$ 5 mil, estimada em R$ 40 bilhões por ano. Recentemente, a Câmara
rejeitou proposta de tributação das fortunas, mesmo com alíquotas bem pequenas,
portanto, não há garantia de que haverá de fato a elevação do limite de isenção para R$
5.000. Já o pacote de cortes de gastos sociais já foi votado pelo Congresso a toque de
caixa, com pouquíssimos alívios, e rapidamente será enviado à sanção presidencial.

É impressionante a diferença de tratamento dado aos interesses do setor financeiro e
rentistas, tendo em vista que a cada 1% de aumento da taxa básica de juros SELIC pelo
Banco Central, há um aumento de gasto com juros da dívida pública de R$ 55 bilhões por
ano, e ninguém exige que se indique de onde virão os recursos para isso, porque
historicamente esses juros têm sido pagos com os sacrifícios sociais (cortes de despesas
sociais, contrarreformas, privatizações etc.), e quando esse sacrifício não é suficiente,
simplesmente vendem mais títulos públicos, pagando juros exorbitantes, e pagam juros
com emissão de nova dívida, desrespeitando o disposto no Art. 167, III, da Constituição
Federal.

4 – O que é o Sistema da Dívida?

Conforme constou em nossa mais recente cartilha, o “Sistema da Dívida” corresponde ao
funcionamento distorcido do endividamento público, ou seja, em vez de servir para
aportar recursos ao Estado, a dívida pública tem funcionado como um instrumento que
promove uma contínua e crescente subtração de recursos públicos, que são direcionados
principalmente ao setor financeiro. Criei essa expressão a partir das diversas experiências
à frente da Auditoria Cidadã da Dívida, investigando a dívida pública do Brasil e de outros
países, o que permitiu constatar a geração de dívida pública sem contrapartida alguma,
devido à atuação de mecanismos financeiros que interagem com todo o funcionamento
da Economia do país de forma sistêmica.

Apesar de a grande mídia sempre repetir o falso discurso de que o governo estaria tendo
déficit cobrir o rombo das contas públicas, na realidade, é o contrário, pois o rombo está
localizado no Sistema da Dívida e, como já mencionei antes, o cálculo do resultado
primário omite diversas receitas, inclusive muitas que nada têm a ver com a emissão de
títulos públicos.

Analisando-se o Painel do Orçamento Federal, verificamos que a dívida pública não tem
fornecido recursos para as áreas sociais, mas sim, RETIRADO recursos: em 2024, até o
momento, já foram gastos R$ 329 bilhões em juros e amortizações, provenientes de fontes
que nada têm a ver com a emissão de títulos da dívida. Por outro lado, a emissão de títulos
para financiar gastos sociais foi de apenas R$ 92 bilhões, ou seja, no final das contas, a
dívida pública RETIROU R$ 237 BILHÕES das áreas sociais. Além disso, R$ 1,65
TRILHÃO já foram destinados para juros e amortizações, provenientes da emissão de
novos títulos da dívida, que também poderiam e deveriam estar sendo destinados para
investimentos sociais, como países desenvolvidos fazem. No total, já foram destinados
R$ 1,98 TRILHÃO para o Sistema da Dívida esse ano, o que significa 44% de todo o
gasto do governo federal em 2024 até o momento.

Esse sistema precisa ser enfrentado urgentemente, caso contrário assistiremos o
aprofundamento contínuo dos cortes de gastos sociais, contrarreformas e privatizações
para atender os interesses de rentistas e especuladores. A ferramenta hábil para isso é a
auditoria. 

5 – O que é a bolsa banqueiro que tem sido duramente criticado pela ACD?

É a remuneração que o Banco Central paga diariamente aos bancos sobre um dinheiro
que sequer pertence a eles. Questionamos esse pagamento pois não há justificativa para
isso! É uma “bolsa”. Atualmente, o montante de R$ 1,75 trilhão no caixa do Banco Central representa a sobra
de caixa dos bancos; é um dinheiro que pertence à sociedade que mantém depósitos
bancários ou aplicações financeiras. Esse dinheiro da sociedade deveria retornar a ela por
meio de empréstimos para pessoas e empresas a juros baixos, a fim de dinamizar a
economia com a ampliação de negócios e geração de emprego e renda. Mas não é isso
que acontece. O Banco Central aceita o depósito dessa fortuna e paga diariamente a taxa
SELIC ou até mais sobre este valor aos bancos, por meio das chamadas “operações
compromissadas” ou “depósitos voluntários remunerados”.

Em 2023, o Banco Central gastou mais de R$ 220 bilhões para doar esses juros aos
bancos, sobre um dinheiro que nem sequer pertence a eles. Por isso, denominamos esse
pagamento de bolsa banqueiro. Dessa forma, mais uma vez os recursos da sociedade que
poderiam e deveriam estar circulando, na forma de investimentos produtivos em benefício
da própria sociedade, ficam retidos, esterilizados no Banco Central, provocando, ao
mesmo tempo, danos irreparáveis à economia e à sociedade: escassez de moeda na
economia, elevação dos juros de mercado, explosão da dívida pública e rombo aos cofres
públicos.

A desculpa usada pelo Banco Central para esterilizar esse elevadíssimo volume de moeda
tem sido o “controle inflacionário”, o que não tem base técnica ou científica alguma,
tendo em vista que no Brasil o volume de moeda em circulação tem sido mantido em
patamar de escassez, e, ademais, a inflação aqui decorre da elevação de preços
administrados pelo próprio governo (combustíveis, energia, remédios, planos de saúde,
entre outros) e dos preços de alimentos (devido a fatores climáticos e à priorização do
grande agronegócio de exportação).

Apenas 1 ano de bolsa banqueiro seria suficiente para reparar todas as perdas acumuladas
pelo funcionalismo público federal desde 2010, estimadas em R$ 158 bilhões anuais.

6 – Como você avalia a negociação entre o executivo, legislativo e judiciário em
relação as emendas parlamentares para aprovação do pacote?

Lamentavelmente, a maior parte dos congressistas foca a sua atuação nas chamadas
emendas parlamentares, que garantem recursos para suas regiões, e permitem que possam
propagandear tais ações como resultado de seu trabalho, tendo com isso claros benefícios
eleitorais. Ao mesmo tempo, ignoram que um montante de recursos 40 vezes maior que
o dessas emendas – e que representa mais de 40% de todo o orçamento federal – é
anualmente destinado ao Sistema da Dívida, ignorando também a obrigação de que o
Congresso Nacional realize a auditoria da chamada dívida pública, repleta de
ilegitimidades.

7 – Nesse contexto qual a importância da auditoria da dívida? E de medidas como uma
reforma tributária real que incida sobre as grandes fortunas e sobre ganhos com lucros e
dividendos, por exemplo?

Considerando as imensas riquezas existentes no Brasil, sob todos os aspectos, inclusive
cerca de R$ 5 trilhões em caixa (na Conta Única do Tesouro, no caixa do Banco Central
e em reservas internacionais), não há outra razão para sacrificar ainda mais os direitos
sociais e deixar tantas demandas sociais urgentes desatendidas, a não ser a subserviência
completa ao Sistema da Dívida, que absorve todo ano quase a metade dos recursos do
orçamento federal, afetando também os orçamentos dos demais entes federados, pois esse
sistema consome toda a receita auferida com a venda de títulos públicos e ainda abocanha
recursos de outras fontes, que deveriam estar financiando investimentos sociais.

Além disso, temos no país as graves injustiças tributárias, que privilegiam por exemplo
os que vivem de juros da dívida pública (estrangeiros ganham bilhões com juros da dívida
interna federal e são completamente isentos de imposto de renda); sócios de bancos e
grandes corporações que recebem lucros e dividendos (que também são isentos de
imposto de renda no Brasil), e o setor primário exportador, que não paga ICMS, e
continuará não pagando o IBS criado pela Reforma Tributária do Consumo recentemente
aprovada pelo Congresso Nacional.
O resultado dessa subserviência é visível: um país rico com a imensa maioria da
população pobre e até miserável; um atraso socioeconômico vergonhoso, descaso ao meio
ambiente, população desatendida em seus direitos sociais básicos, e, ao mesmo tempo, o
país que paga os maiores juros do mundo e onde os bancos batem sucessivos recordes de
lucro.

É preciso fazer uma reforma tributária justa, acabando com os privilégios tributários dos
super ricos, e enfrentar urgentemente o Sistema da Dívida para que os recursos públicos
sejam aplicados corretamente em nosso desenvolvimento socioeconômico de forma
sustentável e respeitosa em relação aos direitos sociais e ambientais. A ferramenta hábil
para esse enfrentamento ao Sistema da Dívida é a auditoria, com participação da
sociedade, para que sejam interrompidos os seus mecanismos de desvio das riquezas
produzidas pela classe trabalhadora para especuladores nacionais e internacionais.

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