Abraçômetro:
00
d
00
h
00
m
00
s – Sem a entrega do prédio CBS02 – Curitibanos

Minha vida e o Sintufsc – Por Raquel Moysés

Minha vida e o Sintufsc – Por Raquel Moysés

A gente passa uma vida tentando encontrar o melhor momento ou um lampejo de inspiração para dizer aquilo que vive dentro de nosso pensamento e vibra em nosso sentimento. Mas, muitas vezes, a palavra foge, o verbo escapa, e parece que tudo que se poderia dizer é vago, precário ou insuficiente. Outro dia, porém, estávamos eu e meu amigo Rodrigo, na sala da diretoria do Sintufsc, trabalhando como sempre, e entra um nosso companheiro de tantas estradas luta afora.

Ato primeiro

Ele pára na entrada da porta, meio sem jeito, quase querendo sair, e vai logo dizendo: – Desculpem, ir entrando assim, a gente sabe que vocês estão sempre aí, ocupados…
Levantamos o rosto, e dizemos para ele falar o que tem a dizer. Afinal, comentamos: – Se você esperar para conversar uma hora que a gente na diretoria não tenha nada para fazer, não vai falar nunca…
E o que vem depois, da parte desse visitante inesperado, deixa-nos desconcertados, mas surpresos e agradecidos, pelo testemunho de generosidade e reconhecimento do companheiro pelo nosso trabalho. O que ele diz é mais ou menos assim: – Vocês pensam que não, mas a gente vê, o tempo todo, o que vocês fazem no Sintufsc. E diz mais: – Foi aqui, nesse sindicato, com vocês, que eu comecei a me sentir realmente gente,valorizado, a me sentir ser humano… E continua contando cenas de sua vida.
A verdade é que, na diretoria, sem liberação para fazer o trabalho sindical, divididos entre nosso setor na UFSC e um mar de tarefas sempre atrasadas no sindicato, quase nos habituamos a receber críticas e cobranças, muitas vezes pesadas. Por isso, quando um agradecimento chega assim, inesperado, caudaloso e sincero, pleno de fraternidade, bate no peito uma coisa esquisita.
Primeiro, vem uma sensação de estranhamento, parece que não é de você que a pessoa à sua frente está falando. Depois, vem à tona algo misterioso, que aquece todo o corpo. É como se uma vertente de sangue bom entrasse de repente nas veias para alimentar de vida as nossas entranhas meio enfraquecidas pelo descaso.

Ato segundo

Com o companheiro parado à nossa frente, eu e Rodrigo ficamos um pouco assim, sem saber o que dizer. Nós três, na verdade, nos sentimos comovidos. É como se caminhássemos sobre um fio de prumo. Qualquer gesto brusco, mal pensado, poderia romper o encanto e obscurecer a claridade daquele instante, que dura um átimo de eternidade.
E eu, uma mulher, que tem, talvez, menos pudor em revelar emoções, de chorar quando vem o impulso, me sentia ainda mais enternecida ao ver os olhos de meus dois companheiros desaguarem a água bendita que verte do sentimento puro.
Isso tudo aconteceu na véspera de uma assembléia pesada, que prometia raios e trovões, e foi como se caísse sobre mim o maná sagrado que alimenta o ser de necessidade. Penso comigo:- Agora estou nutrida para atravessar a tempestade… E assim foi.

Ato terceiro

Agora, sou eu que tenho que devolver minha palavra de plena gratidão a esse companheiro que teve a ternura de nos acalentar, em véspera de anunciada tormenta, oferecendo a rede de seu abraço invisível. Ele nem sabia que nós dois estávamos ali perturbados, estudando uma causa difícil, preparando as informações, interpretando, abrindo o caminho das pedras. Chegou de mansinho, como quem teme incomodar. E, sem saber nem pretender, nos abriu um horizonte de humanidade.
Foi esse companheiro que me fez ter a coragem de escrever este texto, que eu continuaria adiando, e que agora me sai natural, quase em jorros, alimentado pela fonte secreta da sua generosidade. Faz tempo que eu queria escrever uma carta para minhas companheiras e meus companheiros da UFSC, para dizer o que eu sinto depois de tanto tempo da minha vida ligada à vida do nosso sindicato, mas hesitava.

Ato quarto

Anos a fio vivo essa história, primeiro como espectatora, logo depois da minha chegada a Florianópolis, vinda da Universidade Federal do Paraná. Em seguida, como “apoio” no sindicato e, mais adiante, como parte da diretoria colegiada.
Foram anos de durezas, mas também anos de aprendizado e de inesgotáveis trocas humanas. Não só dentro do nosso sindicato com os trabalhadores da base e os trabalhadores da sede ( nosso braço forte de todas as horas), mas também no meio de outros humanos seres de sindicatos irmãos e movimentos de luta, com os quais caminhei e aprendi.
Também fui sustentada, nesses anos todos, pelos meus queridos mais íntimos, que souberam, dentro de casa, entender minhas ausências, meus momentos de exasperação, de tristeza e nervosismo. Eles sofreram comigo, mas também viveram as pequenas alegrias que eu trazia para compartilhar nas noites de pão e café. Uma bonita edição do nosso jornal Circulação, uma manifestação de rua em dia de chuva, uma celebração com partilha do alimento sagrado, a união em momentos de luta, tudo era motivo para erguer a cabeça e recomeçar de novo o passo.

Ato quinto

Há, porém, um ser que nasceu de dentro de mim, gerado nas minhas entranhas, que, de um modo inexplicável, quase misterioso, conduziu os meus caminhos todos esses anos. Já no ventre, fez nascer dentro de mim tal desejo de luta, de beleza, que fui tomada de assalto por uma crença poderosa de que, apesar de tudo, a única esperança que para nós existe, definitivamente, está na relação com o outro.
Ano depois do outro, esse serzinho foi crescendo, enquanto ele e eu crescíamos dentro do movimento da vida. Primeiro, levado nos meus braços ou sentado no colo. Depois, já caminhante, nas barracas de greve, nas reuniões e assembléias intermináveis. Ele tinha a paciência de me esperar e a sabedoria de me dizer palavras certas, de me acalentar na hora do desconsolo, de me abrigar na hora dos sofrimentos, de rir comigo na hora da festa. Entregou panfletos nas ruas, caminhou em passeatas, levantou o dedo em assembléias, sentindo que era também parte daquela história toda de trabalhadores e suas lutas.
Quando bem pequeno, chegou a pensar que as greves eram uma “festividade”, uma coisa que acontecia todo ano, que tinha data marcada como a páscoa ou o natal, ou o dia do aniversário da gente. Depois é que foi entendendo tudo, percebendo o risco que tinha nessa “festa”. Caminhando junto, ia me ensinando que a vida é dura mesmo, mas que é bela, e precisa ser vivida com encantamento e esperança.

Ato sexto

Mas, de tudo o que o meu menino ofereceu, talvez o que mais tenha me confortado, é que, toda manhã, quando o deixava na escola, às sete da manhã, antes de ir para a universidade,ele me perguntava: – Mamãe, onde você vai trabalhar hoje?
Meu filho entendeu como talvez ninguém mais nessa universidade, que o que fiz no sindicato, esses anos da minha vida – e o que fizeram meus companheiros da diretoria esse tempo todo – foi, é, um trabalho. Um trabalho duro, um trabalho bonito, um trabalho exigente, um trabalho pouco respeitado, um trabalho inevitável, um trabalho necessário. Mas pouca gente vê a tarefa da organização dos trabalhadores como um trabalho. Chefias e direções cobram a presença no setor. Filiados às vezes nos tratam como se fôssemos servos, aqueles que têm que carregar o sindicato, fazer a luta, dar a conta de tudo e ainda levar a maior bronca quando algo dá errado. Há colegas nos setores que sequer oferecem uma mão de ajuda. Outros, não cobram explicitamente, mas falam a língua pesada do silêncio, que faz sofrer tanto ou mais.

Ato sétimo

Meu filho, porém, toda santa manhã, me lançava um olhar de ternura, e me renovava a energia quando se despedia, na porta da escola, e me fazia a pergunta de sempre: – Onde você vai trabalhar hoje, mamãe?
Por causa desse trabalho, ele viveu minhas ausências, mas teve da minha presença plena, repleta da certeza de que não nasci para viver sozinha; não nasci para viver minha vidinha isolada no aconchego de minha casa; não nasci para me fechar no meu muro de trabalho, virada para o computador, pensando que a vida toda passa por ali, pela claridade daquela telinha de monitor…
Por estar certa dessa escolha, ou desse destino, esse tempo no Sintufsc foi um tempo de vida plena. Constatar isso me faz lembrar o rabino Abraham Heschel – que foi criticado pelos seus iguais por sua militância política, inadequada, diziam, para um religioso. Mas, para esse homem sábio, até um protesto social era uma experiência religiosa, pois religião sem indignação com a política do mal é algo impossível. Ele confessou, depois de uma passeata histórica com o povo negro em luta, caminhando de braços dados nas ruas com Martin Luther King: – Eu sentia que as minhas pernas estavam rezando!

Ato contínuo…

Obrigada, Stefano, pela candura do calor humano que me ofereceu e que me aconchegou de delícias o peito.
Obrigada Assis, pelas vezes que me esperou, sorridente, na escadaria do sindicato, oferecendo a fartura de seu companheirismo rumoroso. Um lume para os tempos duros que seguem.
Obrigada Ângela, mãe universal, terna companheira-símbolo de todas as mulheres lutadoras que comigo caminham.
Obrigada, companheiro Marlove, que irrompendo silenciosamente naquela clara manhã na sala do sindicato, nos ofereceu a promessa de uma mão estendida.
A vida é agora…

Ser humano é precisamente ser responsável. É experimentar vergonha em face de uma miséria que parece não depender de si. É ter orgulho de uma vitória dos companheiros. É sentir, colocando a sua pedra, que contribui para construir o mundo.
Antoine de Saint- Exupéry

Visão Geral da Privacidade

Assim como em outros web sites, o web site https://sintufsc.com.br/ (adiante, o “Web Site” e/ou o “Portal”) utiliza uma tecnologia denominada “cookies” .