Abraçômetro:
00
d
00
h
00
m
00
s – Sem a entrega do prédio CBS02 – Curitibanos

Viva o dia dos vivos! Por Raul Longo

Viva o dia dos vivos! Por Raul Longo

Operária e semi-analfabeta, minha mãe era muito ingênua. Contava que demorei a me decidir vir ao mundo e, segundo suas contas, que garantia mais correta do que as da parteira, foram 11 meses. A parteira (nunca compreendi bem porque parteira, se nasci em maternidade), reduziu para 10, mas fato é que minha mãe já estava no hospital quando lhe ataca o faniquito e não houve quem a segurasse.

Botou seu talherzinho vermelho sob a blusa bege, cobriu-se com o lenço colorido e todos os demais detalhes que milhares de vezes descreveu, sem jamais se contradizer durante 46 anos. Morreu quando eu tinha 46 anos. E morreu orgulhosa de ter deixado a maternidade para que eu não nascesse no dia dos mortos.

Claro que terminaram por convencê-la de que na realidade não foi por essa sua providência que acabei me decidindo somente algumas semanas mais tarde, mas isso não a impedia de igualmente se orgulhar de seu heroísmo maternal.

Evidente que, como sempre nesses relacionamentos de filho e mãe, tivemos muitas discordâncias ao longo da vida e não iria alimentar mais uma, tentando convencê-la de que o dia dos mortos é apenas uma data qualquer. Inventada pelos vivos para vender flores como na da criança se vende brinquedos, do carnaval se vende confetes e serpentinas e no natal se vende de tudo.

Mas por razões diversas me ponho a pensar e avaliar com maior atenção sobre o significado do dia dos mortos. Vêm-me à memória os variados rituais em homenagem aos mortos nas mais diversas culturas, dos mais macabros e escatológicos aos mais alegres e contraditórios ao cristianismo ocidental.

E lembro também as semanas do ano de 1985 em que fui convencido pelos médicos de que iria morrer. Meu abatimento foi profundo, triste, revoltado. Tinha apenas 34 anos e, a meu ver, muito ainda a fazer. Escrevia, então, um romance que já projetara epopéia em 4 volumes e estava no início do segundo. Pedi aos médicos que me prolongassem o mais possível para terminar a obra e, ali na cama do hospital, escrevia desesperadamente minha ficção sobre o fim e o reinício da humanidade num hipotético futuro.

Apenas dois de meus amigos foram avisados de minha doença, quando ainda não a avaliava fatal como, de fato, nunca foi, mas no engano do diagnóstico médico pedi que se suspendesse qualquer visita. Não suportaria o mal estar daqueles amigos por um caso que se acreditava sem qualquer possibilidade de recuperação.

Uma noite, da primeira semana em que aguardava a vaga em outro hospital de casos terminais como o meu, exausto de tanto escrever e divagando pela paisagem ínfima da janela, ponderava aquela espera da morte de alguém para poder ocupar seu lugar, quando avisto no céu escuro a luz colorida de um balão.

Era um desses balões de festa junina e ascendia em diagonal, num percurso lento da direita para a esquerda da janela, da cabeceira aos pés de meu leito. Não sei se pelo céu carregado, pelo peso do balão ou pouca chama de sua tocha, por alguma razão tive a sorte de que sua passagem fosse lenta o suficiente para que cogitasse sobre os tantos balões que já vira na vida.

Desse primeiro pensamento me ocorreu que eu mesmo já andara por lugares muito mais distantes do que aquele ou qualquer outro balão poderia atingir. E ao cogitar sobre os meninos que correriam atrás do balão quando caísse, pensei nas tantas pessoas que conheci pelas diversas cidades por onde andei: pessoas mágicas, incríveis, ou pessoas naturais, simples e adoráveis.

Evidente que tivera o desprazer de conhecer também pessoas horríveis, negativas, maldosas; mas dessas nunca lembro. Em que importariam? Lembrei-me apenas das que me foram significativas e, naquele momento, realmente não mais importava se estivessem vivas ou mortas, eram todas queridas da mesma forma.

Confesso que então chorei. Só não posso dizer que tenha chorado de tristeza, ou por qualquer sentimento de perda. Não sou religioso, não sei como se chora de êxtase e tampouco posso afirmar que esse tenha sido o motivo de meu choro, mas aquelas lágrimas que me escorriam silenciosas e sem qualquer soluço, eram, isso eu sentia, um profundo agradecimento pela existência.

Não a minha mesquinha e solitária existência, ali ao aguardo da morte, mas a existência do tudo, de todos. A existência independente da morte, das dores, das doenças, do fim. A existência da eternidade dos momentos já vividos, dos momentos que não viveria, de tudo o que amei e o que não amaria.

E assim, finalmente adormeci, acordando com o caderno onde manuscrevia o segundo volume do romance, ali ao lado. Reli as últimas folhas, cortei algumas palavras, refiz parágrafos e, antes que as copeiras da enfermaria distribuíssem o café da manhã, decidi escrever um romance sem fim, porque não haveria como estar vivo para escrever seu fim.

Nem mais agoniava o término daquele volume quando me animei por uma idéia, pedindo às moças do café que me chamassem a enfermeira a quem passei os números de telefone de meus amigos. Contente com minha animação, a moça conseguiu marcar a visita para o mesmo dia.

Vieram com caras funestas e, desgraçadamente, não tinha condições para convencê-los de que apesar das dores e falta de ar dificultando a fala, não havia razão alguma para tanto lamento, mas, gesticulando, consegui que lessem a sinopse do final daquele volume e o que aconteceria nos dois seguintes.

Afirmaram e reafirmaram terem entendido minha letra e o pedido de que copiassem o primeiro volume, já datilografado, as folhas manuscritas do segundo e a sinopse rabiscada às pressas, além de uma carta também a ser copiada para que tudo fosse enviado pelo correio aos endereços de uma lista de escritores. Na carta explicava o que então já teria me sucedido, além do desejo de que, caso interessasse a algum deles, se continuasse a escritura da história.

Depois que meus amigos se foram, dei-me conta de um ponto falho no meu plano. Levara tão mais em conta a probabilidade de que nenhum daqueles escritores se interessariam por projeto alheio, que não me ocorreu possibilidade inversa.

E se todos, por pruridos cristãos, resolvessem atender o último pedido de um moribundo? Já me irritando com o hipotético cristianismo incrustado naqueles escritores que selecionei exatamente por imaginá-los capazes de entender a temática central da obra: a natureza cíclica da existência; experimentei nova desolação. Novamente traído como o fora pelas dores, pela febre vespertina e o diagnóstico terrível.

Foi preciso um balão me lembrar dos meninos do mundo. Do menino que fui quando nada era mais importante, não havia perigo maior, nenhum medo superava o objetivo máximo da glória efêmera de ser o que pegasse o balão. Perdia-se o fôlego, mas ainda teria de se impor, no grito e na ameaça, o respeito para resgatar o balão da inveja daqueles que se percebendo incapazes de alcançá-lo, atiravam pedras para rasgá-lo.

Quantas brigas! Quanta dificuldade para convencer que o prazer maior do balão não está em ser seu dono, e sim no restaurar da tocha para que mais uma vez voe, longe, para outros meninos correrem atrás e novamente colorir o céu de luzes.

Hoje os balões são ameaças de incêndio, mas em minha infância o rastro de luzes dos balões juninos nos céus nada mais era do que o indício da existência de meninos na terra. Quanto mais balões, mais meninos! Quanto mais balões, mais vida! E pelo testemunho e comprovação dessa vida é que arriscávamos as nossas correndo pelos telhados, pulando os muros, atravessando as estradas, os trilhos de trem, os meios de matos, esfolando-nos nos tombos, quebrando-nos nas quedas, rasgando-nos nas cercas de arame farpado. Tudo para que o balão volta-se ao céu e fosse contar a outros meninos que em algum lugar, ainda que solitário, havia um menino como eles.

Não havia nada de terrível no diagnóstico dos médicos. Eu sabia disso e era sobre isso que escrevia no romance, mas a percepção cristã da possibilidade de minha morte me roubara o senso cíclico da vida, que só o balão, então, me restituía.

Pensei que teria de escrever outra carta, admoestando e ameaçando aqueles que aceitassem meu projeto apenas pela eventualidade de alguma comiseração. Tentava imaginar como poderia ameaçar de assombrar alguém para que acreditasse na impossibilidade da morte e, por conseguinte, da própria assombração, quando, por sorte, a crença e certeza no processo cíclico da vida me convence que deveria delegar também aquela preocupação. Afinal os mórbidos problemas cristãos também são de exclusiva responsabilidade dos vivos.

Só o que poderia fazer, enquanto aquele meu ciclo não se completasse, era continuar escrevendo apesar das dores que não me permitiam muito tempo numa única posição. O que não deixava de ter sua vantagem, pois me mantinha desperto e quanto menos dormisse, deixaria mais folhas manuscritas para serem copiadas.

Na semana seguinte, os médicos avisaram da transferência eminente. Sabia que então ficaria ligado a soros e aparelhos que me impediriam totalmente de escrever, mas em verdade já não conseguia progredir com as palavras que as dores e o sufocamento me roubavam, dificultando a memória e o desempenho. Foi quando a enfermeira teve uma idéia simples e salvadora: mudar a prescrição da inalação.

Com duas aplicações, as novas substâncias elegidas pela enfermeira provocaram um efeito inusitado de tosse e escarro, além de facilitar a respiração como já ocorria com os inalantes anteriores.

Avisei aos médicos sobre o gosto purulento no que expelia e, imediatamente, recolheram para análise. Na manhã seguinte, que seria o dia de minha transferência, adentraram o quarto com dois sorrisos lindos, comunicando que eu contraíra uma doença de médico. Não entendi e explicaram que os médicos é que contraem bactérias tão raras quanto a que me afetara, enganando e levando-os ao diagnóstico errôneo de doença fatal.

Enfim, não morri. E só fui terminar o romance muitos anos depois. Mas paguei-me a promessa de uma história sem fim, pois meu romance de 4 volumes reinicia-se no primeiro capítulo do primeiro volume. Para contar como isso ocorre, precisaria contar a história inteira e são mais de 500 páginas, onde o protagonista é a humanidade e o tema central a natureza cíclica da existência.

Numa introdução ao livro “4º Mundo” — o título geral daqueles 4 romances — em advertência ao leitor explico que a obra foi escrita para a humanidade, mas por razões diversas agora entendo que o escrevi também para a minha mãe.

Cristã que era, entenderia de meu romance uma enorme heresia, mas na verdade foi, também, uma tentativa de lhe mostrar que todas as dores e sofrimentos de sua vida de mulher pobre, operária, maternalíssima de saúde debilitada e tão pouco informada, e até mesmo sua morte que acompanhei momento a momento, apenas foram expressões do seu ciclo existencial. Uma expressão orgânico/energética manifesta como vida.

Claro que isso não lhe aliviaria as dores, nem a tornaria menos solitária e incompreendida pelos filhos que amou. Nem mesmo creio que a incompreensão de meus irmãos fosse por ela em si. O que nela não entenderam, o que nela lhes incomodava era, sim, a mesma compreensão cristã da morte, da doença, da dor.

E acredito que também por ela escrevi o livro, para lhe desejar o mesmo feliz dia dos vivos que desejo a todos nesse dia dos mortos. Todos! Amigos ou não. Aniversariantes ou não! Vivos ou não!

Raul Longo

Visão Geral da Privacidade

Assim como em outros web sites, o web site https://sintufsc.com.br/ (adiante, o “Web Site” e/ou o “Portal”) utiliza uma tecnologia denominada “cookies” .